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Sou doutoranda em Estudos linguísticos pela UFMG e professora de Língua Portuguesa. Embora alguns (muitos) eternamente alunos me chamem de professora (ou, mesmo, professorinha) ainda adoro o título de estudante.

sábado, 3 de julho de 2010

O PODER DA PALAVRA



Maria Lourdilene Vieira[i]

O que é uma palavra? O que consta numa palavra? Ao guiar, num poema, o fazer poético, Drummond alerta: “Penetra surdamente no reino das palavras (...) / Chega mais perto e contempla as palavras / cada uma / tem mil faces secretas sob a face neutra”. Tal afirmação nos remete ao fato de que cada palavra comporta um potencial de significações (‘mil faces’) que vão sendo delineadas a partir das diferentes situações de uso, ainda que, fora de uso, em seu estado de dicionário, nos surja aparentemente neutra. Podemos já depreender que, são nas situações de uso, por sua vez, particulares, que as palavras assumem (diferentes) significações.

Quando usadas, em que incorporam significações particulares em prol da construção de sentidos num texto, por exemplo, as palavras mostram o seu poder de realizar ações, de criar fatos e realidades. O poder delas está tão fortemente arraigado à nossa vida, que perpassa o senso comum e é capaz de milagres! Sim, milagres, grandes milagres, no seu sentido mais divino. Isto porque até mesmo religiões, de culturas de tempo, lugar e espaço diferenciados, acreditam num potencial sobrenatural das palavras.

Um dos exemplos mais comuns está na própria bíblia, já no seu primeiro livro, Gêneses (I, 1-5), que afirma: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o espírito de Deus movia-se sobre as águas. E Deus disse: Exista a luz. E a luz existiu. E Deus viu que a luz era boa; e separou a luz das trevas. E chamou a luz dia e as trevas noite. e fez-se tarde e manhã, (e foi) o primeiro dia”. Vejamos como a palavra é apresentada a partir de um poder mágico de criar. Deus cria a partir daquilo que diz.

Em nossa vida prática, isto acontece a todo instante, mas como ocorre concomitante a outros fatores, nem nos damos conta disso. Vejamos: alguém disse que o Mick Jagger é ‘pé-frio’ porque, em copas do mundo, as seleções para as quais ele já torceu, voltaram para casa antes do final do campeonato. Mais pessoas repetem estas palavras já com caráter de informação, a mídia também, logo, os torcedores assumem isto como um fato e não querem mais que Mick Jagger torça para a seleção de seu país, seja esta qual for.

O fato de alguém ter dito um ‘Cala boca Galvão’ no Twitter e outras pessoas começarem a repetir ganhou ares e ultrapassou o seu sentido mais primordial – que seria criticar a postura apaixonada do narrador de futebol – e uma tradução para os estrangeiros, que não conseguiam dá sentido à expressão, inaugurou uma das maiores mentiras que circularam pela internet nos últimos dias. A expressão depois apareceu disfarçada numa falsa campanha para salvamento do pássaro brasileiro Galvão. Resultado: a mentira – mais em tom de piada – ultrapassou as barreiras do Twitter, apareceu como comunidade no Orkut, em um vídeo do You Tube, até mesmo nas páginas do The New York Times.

Não nas mesmas proporções, mas nesta mesma perspectiva, as palavras proferidas no nosso dia a dia ganham dimensões tão vultosas ao ponto de até mesmo decidirem nossas vidas. Elas inauguram atos, realizam ações. Na Linguística dá-se o nome de atos de fala ao poder realizador das palavras, proferidas em lugar e tempo apropriados pelas pessoas autorizadas sócio-culturalmente. Assim, uma cerimônia de batismo de uma criança se concretiza, quando, no final de todo o ritual, na presença dos padrinhos, o padre diz “eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. No tribunal, nem sempre é o juiz quem dá a sentença, mas é ele quem deve lê-la, e, após isso, cumpre-se uma decisão.

Por meio das palavras comunicamos, interagimos, informamos, mas também criticamos, mentimos, enganamos... Criamos diferentes realidades, encenamos: dizer um ‘eu te amo’ ou um ‘eu te odeio’ a alguém, pode até não ser verdade, mas o simples fato de ser proferido já causa algum efeito. Falamos e escrevemos o que queremos, mas é ao longo de nossa vivência em sociedade que adquirimos os costumes, assimilamos os diferentes usos e as formas mais apropriadas de usos das palavras.

É por isso que o ‘eu te amo’ e o ‘eu te odeio’ normalmente seriam ditos em circunstâncias diferenciadas; que é o padre quem diz “eu te batizo” e não um dos padrinhos ou o pai ou a mãe da criança; que a sentença é lida pelo juiz ao final do julgamento e não no início ou no meio; que acreditamos que o Mick Jagger é mesmo ‘pé-frio’, porque a afirmação tomou como pressuposto evidências recorrentes; e que o ‘Cala-boca Galvão’ proferido aqui no Brasil foi tomado em outro sentido no exterior, por que a expressão lá foi, em tom de brincadeira, contextualizada noutro sentido para aqueles interlocutores.

Com as palavras damos nomes às coisas que nos cercam, criticamos as pessoas, avaliamos os acontecimentos, etc. Elas constituem o sistema mais completo de comunicação que dispomos, a linguagem verbal, e têm, deveras, o poder mágico de criar. Afirmar isso é tão factual quanto admitir que, enquanto seres sociais, ao passo que constituímos, somos constituídos por linguagem(ns).



[i] Mestre em Letras, área Estudos da Linguagem, pela UFPI.

vieira.marialourdilene@gmail.com

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